FLORA
(1979, gravada em Luar, 1981.)
Escolhida por Flora. Não entrou para o repertório.
Imagino-te já idosa
Frondosa toda a folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora
Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ó, Flora
Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora
Pelo chão, muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ó, Flora
Imagino-te futura
Ainda mais linda, madura
Pura no sabor de amor e
De amora
Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono, com certeza
Debaixo da tua sombra
Ó, Flora
Comentários de Gil: [Para Gil, seria difícil não aproveitar a sugestão poética de um nome tão bonito] “para expressar todo um afeto a partir de uma ‘viagem pelo reino do seu nome’. Eu não resisti. Assim, os elementos e as imagens da canção são todos extraídos do reino vegetal. Flora é como se eu penetrasse no bosque para encontrar a fada.”
Das relações entre música e números e do gosto pela composição dividida em três partes, com sua justificativa – “Fiz as duas primeiras partes [cada parte dividida, na transcrição, em duas estrofes] num dia e, insatisfeito com isso, fiz no outro a terceira, que me satisfaz menos. Aquelas são muito profundas, densas, e a última mais diluída, ornamental – ficou como se fosse de presente pra ela, Flora. Ainda assim achei melhor mantê-la, pela minha mania do três; pela ideia de síntese que o número três dá. Às vezes duas partes são suficientes, mas em geral eu prefiro colocar mais uma, para promover dois deslocamentos semânticos entre as unidades – um, da primeira para a segunda, e outro, da segunda para a terceira. Quer dizer: três (partes) pra dois (movimentos).”
Música-anzol – “Era o verão de 79. Ela estava passando férias em Salvador. Eu a tinha conhecido um mês antes, e nós ainda não namorávamos. Telefonei para um amigo comum. ‘Diga que eu quero vê-la, que vou estar no Teatro Vila Velha entre quatro e seis da tarde. Tenho uma coisa pra mostrar a ela.’ Quando ela chegou, eu cantei a música.
Flora foi portanto uma cantada literal. Cantei Flora na canção e com a canção. É minha única canção-cantada; que bom que tenha ficado suficiente em beleza e elegância. A alma exigia capricho: o sentimento era intenso, e o desejo, de uma relação durável. O que eu cantava não era só uma pessoa, mas toda uma vida com ela. Na letra eu já a imagino ‘idosa’, ‘bela senhora’, ‘futura’. Elis é que me disse: ‘Nunca uma mulher teve de um homem uma música dessa!’ Uma música em que já se-lhe-oferecia a conformidade a estados que iriam aparecer na sucessão de eventos no tempo.
A canção teve pra mim, como talvez pra ela, o caráter da irrecusabilidade da proposta. Flora foi além das intenções nela contidas; acabou tendo uma função. A cantada funcionou. É bom que a música e a poesia também tenham essa utilidade. Um modo sutil de ser útil. Uma sutil utilidade; uma ‘sutilidade’…”
Um não-sei-o-que-é – “Há algumas canções na minha obra que me dão a sensação de um deslocamento para um outro plano, onde a poesia tem os seus elfos, as suas ninfas… 'Flora' é uma delas. Ali parece que o ser da paixão se desloca também, usando a canção como se fora instrumento, escrava dele; que o conjunto da habilidade e do talento do indivíduo, eu, estiveram a serviço de uma encomenda feita por uma outra coisa, um ser, em destaque.
Minha sensação é de que essas músicas ('Metáfora' é outra; 'Dada', também) respondem a uma questão que não era minha enquanto artista; em princípio, é como se eu não as tivesse feito. É como se, de repente, através delas eu pudesse ter acesso a uma leve presença de um ser poético que fosse um espírito, um ser da categoria dos transmateriais, para o qual o criador homem fosse cego: o ser das coisas, o ser eterno.
Eu mesmo não o enxergo e tenho uma grande dificuldade com a apreensão do significado de expressões tais como ‘o espírito do poeta’, ‘o espírito das coisas’; às vezes eu chego perto de alcançá-lo, outras, ele me foge. Parece algo ao mesmo tempo palpável e fugidio; é um negar-se ao afirmar-se, um afirmar-se ao negar-se; é uma coisa… eu não sei realmente o que é…”
[– É um não-sei-o-que-é!]
"– Um não-sei-o-que-é! Bravo! É esse tipo de natureza que eu atribuo ao tal ser de que falo.”