Serafim

(1983, ficou de fora de Extra, em 1983, e só foi gravada por Gil em Parabolicamará, 1991.)

Quando o agogô soar

O som do ferro sobre o ferro

Será como o berro do bezerro

Sagrado em agrado ao grande Ogum

Quando a mão tocar no tambor

Será pele sobre pele

Vida e morte para que se zele

Pelo orixá e pelo egum

Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai xangô

Eparrei, ora iêiê – pra iansã e mãe Oxum

"Oba bi olorum koozi": como Deus, não há nenhum

Será sempre axé

Será paz, será guerra, serafim

Através das travessuras de Exu

Apesar da travessia ruim

Há de ser assim

Há de ser sempre pedra sobre pedra

Há de ser tijolo sobre tijolo

E o consolo é saber que não tem fim

Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô

Eparrei, ora iêiê – pra lansã e mãe Oxum

"Oba bi Olurum koozi": como Deus, não há nenhum

Comentário de Gil: Religiosamente incorreta – "Quando 'Serafim' foi lançada, eu cantava 'carneiro' onde hoje está 'bezerro' – um erro religioso: o carneiro é um animal rejeitado por Ogum e não podia ser referido em sua homenagem. A correção veio depois (no show Tropicália 2 eu fiz a substituição), por advertência do Caetano e da Flora, que havia se iniciado no candomblé. Eu tinha usado 'carneiro' porque é um animal comumente sacrificado no candomblé.

Em 'Lavagem do Bonfim' [canção composta para Gal Costa em 1993] também há algo que pode ser visto como uma incorreção, mas que é proposital. Ao citar o caruru – que não é uma comida para Oxalá – eu não estou em referindo ao caruru como uma comida específica de oferenda a um santo, mas ao caruru como somatório das comidas de santo, que na Bahia chamam carurur. 'Vou ao caruru da dona Fulana', quer dizer, 'lá vai ter abará, acarajé, vatapá, arroz, feijão, inhame etc.'. 'Caruru' ali está portanto no sentido transreligioso, profano, de 'ceia', 'refeição', comida de todos os santos."

Iorubá – "'Kabieci lê': saudação para Xangô; 'eparrei': para Iansã; 'ora iê iê': para Oxum. 'Oba bi Olurum koozi': a expressão eu vi inscrita num para-choque de caminhão em Lagos, acompanhada da tradução em inglês: 'No king as God'. 'Um dia ainda vou usar isso numa música', pensei. Guardei na memória e usei, acompanhada da tradução (livre) em português ['Como Deus não há nenhum' – 'nenhum' rimando com 'Oxum'].

Da utopia da poesia de as palavras serem as coisas, e da relação de correspondência entre som e sentido, fundo e forma – ['O som do ferro sobre o ferro será como o berro do bezerro': as aliterações em erres e bês parecem exprimir aquilo a que a frase alude, estabelecendo biunivocamente a conformidade fônico-semântica, como se os versos não apenas falassem de um ruído: como se fossem o ruído.]

"Os recursos sonoros empregados na construção dessa letra são mesmo muito fortes, de profunda inspiração. Tinha que ser assim, porque a música é sobre a potência – do axé, dos orixás."

[Um deles, Exu – aliás, aludido em outro bloco de carregada sonoridade, uma sucessão tríplice "trs" e vês e esses –, é destacado pelo compositor:] "Tenho por ele uma particular admiração. No sincretismo, Exu é assimilado ao demônio, visto como uma entidade do mal, mas não é nada disso. Embora traquino, travesso ninguém, nenhum orixá trabalha nem vive sem ele. Exu é o eixo, o mensageiro; o que dá energia a tudo – como a luz solar para a Terra.

[Explicitação poética desse pensamento pode ser conferida numa recentíssima música de Gil, intitulada justamente "O eixo e Exu", de 1996. E de 1995 é 'Dança de Shiva', outra canção em que a mesma referência reverenciadora à entidade é feita pelo compositor.]