Tempo Rei

(1984, gravada em Raça humana, 1984.)

 

Não me iludo

Tudo permanecerá do jeito que tem sido

Transcorrendo

Transformando

Tempo e espaço navegando todos os sentidos

Pães de Açúcar

Corcovados

Fustigados pela chuva e pelo eterno vento

Água mole

Pedra dura

Tanto bate que não restará nem pensamento

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Transformai as velhas formas do viver

Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

Pensamento

Mesmo o fundamento singular do ser humano

De um momento

Para o outro

Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

Mães zelosas

Pais corujas

Vejam como as águas de repente ficam sujas

Não se iludam

Não me iludo

Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Transformai as velhas formas do viver

Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

Comentário de Gil: "Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em 'Oração ao Tempo', onde a frase-chave para mim é: 'Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido' - quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.

Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer no pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu 'não posso esquecer que um dia houve em que eu não estava aqui' ['Cada Tempo em Seu Lugar'], um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo – nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo?

Aí reside para mim um problema do existencialismo. Aí, e só aí, eu esbarro um pouco em Sartre, apesar do meu grande amor por ele, e ele não me convence. Sartre morreu e o mundo está aí! Por isso à sua filosofia eu chamaria mais de individualismo do que existencialismo. Um existencialismo individualista, não algo universalizável.

[O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a ideia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” – onde, nas palavras do compositor, "já nem pensar é possível".]