O sonho acabou
(1971, gravada em Expresso 2222, 1972.)
Escolhida por Bem Gil. Não entrou para o repertório.
O sonho acabou
Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou
O sonho acabou hoje, quando o céu
Foi de-manhando, dessolvindo, vindo, vindo
Dissolvendo a noite na boca do dia
O sonho acabou
Dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross
Na barriga de Maria
O sonho acabou desmanchando
A transa do doutor Silvana
A trama do doutor Fantástico
E o meu melaço de cana
O sonho acabou transformando
O sangue do cordeiro em água
Derretendo a minha mágoa
Derrubando a minha cama
O sonho acabou
Foi pesado o sono pra quem não sonhou
Comentários de Gil: “Glastonbury foi um festival grande, mítico, no interior da Inglaterra, feito com todos os cuidados astrológicos e esotéricos para ser o festival dos festivais da era de aquário. Fizeram uma pirâmide enorme, três palcos, trouxeram gurus. Poucos nomes do ‘mainstream’ participaram, mas por lá passaram todos os grupos alternativos – e todos os ácidos lisérgicos.
Nós fomos todos, toda a comunidade brasileira em Londres na época: eu, Caetano, Sandra, Dedé, Cláudio Prado, Antônio Peticov, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Paloma Rocha, filha do Gláuber – talvez até ele tenha aparecido -, Péricles Cavalcanti.
Foi uma semana de desbunde, até que terminou. A gênese da música se relaciona com o amanhecer do dia da retirada, quando nos preparávamos pra voltar. Olhando as barracas sendo desarmadas e o acampamento abandonado, os restos todos no chão, me veio a sensação de que ‘o sonho acabou’ – no sentido de que era o fim do festival, mas também de um sonho muito especial.
Naquele momento, a frase do John Lennon [‘the dream is over’, da música 'God'] estava no ar. 'O Sonho Acabou' diz respeito à minha identificação com ele em seu novo momento de reciclagem do lixo aquariano e arquivamento de um certo deslumbramento do psicodelismo. É uma música discipular; eu era absolutamente louco por ele.”
Do livro GiLuminoso – A Po.Ética do Ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999: "– A estrada é um eterno retorno. ‘O sonho acabou’ era exatamente essa ideia de tomar ali uma constatação trágica, profunda, que Lennon fazia no momento de profunda dor ao compor 'God'. Tudo para que eu pudesse dizer: ‘O sonho acabou/quem não dormiu no sleeping bag/ nem sequer sonhou’, ou seja, se dormirmos nele, sonhamos. Tudo é possível, porque esse sonho, essa radiação se dá e se perpetua. O sonho, como tudo no mundo, é vibração; então ele não se interrompe. Os reflexos dessas ondas vão bater lá nos cafundós do universo, seja lá quantas megas eras forem e quantos eons tivermos que ter. Mas elas voltarão e repercutirão. É isso que quer dizer essa música sobre a repercussão do sonho, ou seja, o sonho, como tudo, como qualquer vibração da natureza repercutirá. ‘O sonho acabou hoje/quando o céu/foi demanhando/dissolvindo/vindo, vindo/ dissolvendo a noite na boca do dia/O sonho acabou/dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross/ na barriga de Maria’. Então, era isso: ao mesmo tempo que estamos engolindo a pílula da vida, estamos plantando nas nossas vísceras as raízes de um novo sonho. O sonho acabou, mas o sonho continua. Rei morto, rei posto."
[– A música do Lennon, então, lhe deu força para fazer essa canção e para que o verdadeiro sonho continuasse vivo.]
"– Ah, deu… Ouvia aquele disco o tempo todo. John cantando: ‘Mother!!!’ – tinha uma força muito grande. E 'God', ‘onde ele falava que o sonho acabou, era uma música sobre aquele confinamento que ele tinha vivido em Los Angeles e que não era só traduzido na capa do disco ou nas reportagens e entrevistas que ele deu. Foi ele que nos alertou sobre aquela corrida toda que a gente vinha fazendo com os ácidos e os desbundes. De repente, é alguém que diz: ‘Peraí, moçada! Peraí!’.
Aquilo foi uma chamada de atenção muito interessante e muito profunda para uma reorganização e recondução do rebanho. Ele, de novo, toma o cajado do pastor na mão e, de ovelha, fez-se pastor de suas ovelhas. Falou e falava para si mesmo e para todos nós. Prestei muita atenção no que John falou e aquilo reorganizou nossas hostes de anjos e demônios internos. Em mim, pelo menos, e em muitos de nós, aquilo reordenou o diálogo interno e falou fundo nos nossos corações e me fez meditar, ajudando a trabalhar minha volta ao Brasil. Voltar para casa e retomar a função pastoral."