Realce

(1979, gravada em Realce, 1979.)
Escolhida por Preta Gil

Não se incomode

O que a gente pode, pode

O que a gente não pode explodirá

A força é bruta

E a fonte da força é neutra

E de repente a gente poderá

Realce, realce

Quanto mais purpurina melhor

Realce, realce

Com a cor do veludo

Com amor, com tudo

De real teor de beleza

Não se impaciente

O que a gente sente, sente

Ainda que não se tente afetará

O afeto é fogo

E o modo do fogo é quente

E de repente a gente queimará

Realce, realce

Quanto mais parafina melhor

Realce, realce

Com a cor do veludo

Com amor, com tudo

De real teor de beleza

Não desespere

Quando a vida fere, fere

E nenhum mágico interferirá

Se a vida fere

Com a sensação do brilho

De repente a gente brilhará

Realce, realce

Quanto mais serpentina melhor

Realce, realce

Com a cor do veludo

Com amor, com tudo

De real teor de beleza

Comentário de Gil: "Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado – a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop –, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções – de dizer coisas através de canções populares –, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.

'Realce' é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa 'ação da não-ação', ou, a impotência que se torna potência, ou, o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.

É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo descobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.

A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de 'salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos' – nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado saturday night fever está propositalmente explicitado nos três pseudo-refrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os 'refrões' remontam ao sentido de potência contido no wu wei.

Estrofe I; versos 1, 2 e 3 – Há uma idéea da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: Homo sapiens. Versos 4, 5 e 6 – O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partícipe do moto-contínuo, cíclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.

Estrofe II; 1, 2 e 3 – O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está 'afeto'; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está 'afeta; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo. 4, 5 e 6 – O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide – mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.

III; 1, 2 e 3 – A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse 'alfômega' nascimento-morte, a grande questão colocada para nós. 4, 5 e 6 – De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o sol ou sob a lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenológico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.

A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, 'Realce' não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveis se abrem.

Era o momento auge da música disco – aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.

Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a 'superfície do profundo' – onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.

E é disso que falam 'Realce' e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos, mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a ideia do estanque prevalescendo sobre a do osmótico e interpenetrante.

Diziam: 'Ah, o brilho! Está se referindo a cocaína!' Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como saturday night fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock'n'roll, o prazer do hedonismo – assim como o prazer do ascetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.

'Realce' custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da trilogia dos re – que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto –, em substituição a 'Rebento', samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum – que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual. (Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte. Raramente uma canção minha nasce da simples decisão de exercitar as palavras e os sons, fazer quebra-cabeças, ludos criativos. Em geral elas partem de um fundamento religioso, filosófico ou político, de alguma intenção pré-determinada, de algo a ser dito e explicado).

Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de 'Realce'. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais difícil. Começada aqui, onde anotei as primeiras ideias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.

A expressão-título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antônio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em 'realce', 'realçar'…"

Não se incomode

O que a gente pode, pode

O que a gente não pode explodirá

A força é bruta

E a fonte da força é neutra

E de repente a gente poderá

Realce, realce

Quanto mais purpurina melhor

Realce, realce

Com a cor do veludo

Com amor, com tudo

De real teor de beleza

Não se impaciente

O que a gente sente, sente

Ainda que não se tente afetará

O afeto é fogo

E o modo do fogo é quente

E de repente a gente queimará

Realce, realce

Quanto mais parafina melhor

Realce, realce

Com a cor do veludo

Com amor, com tudo

De real teor de beleza

Não desespere

Quando a vida fere, fere

E nenhum mágico interferirá

Se a vida fere

Com a sensação do brilho

De repente a gente brilhará

Realce, realce

Quanto mais serpentina melhor

Realce, realce

Com a cor do veludo

Com amor, com tudo

De real teor de beleza

Comentário de Gil: "Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado – a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop –, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções – de dizer coisas através de canções populares –, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.

'Realce' é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa 'ação da não-ação', ou, a impotência que se torna potência, ou, o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.

É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo descobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.

A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de 'salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos' – nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado saturday night fever está propositalmente explicitado nos três pseudo-refrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os 'refrões' remontam ao sentido de potência contido no wu wei.

Estrofe I; versos 1, 2 e 3 – Há uma idéea da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: Homo sapiens. Versos 4, 5 e 6 – O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partícipe do moto-contínuo, cíclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.

Estrofe II; 1, 2 e 3 – O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está 'afeto'; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está 'afeta; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo. 4, 5 e 6 – O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide – mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.

III; 1, 2 e 3 – A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse 'alfômega' nascimento-morte, a grande questão colocada para nós. 4, 5 e 6 – De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o sol ou sob a lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenológico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.

A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, 'Realce' não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveis se abrem.

Era o momento auge da música disco – aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.

Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a 'superfície do profundo' – onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.

E é disso que falam 'Realce' e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos, mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a ideia do estanque prevalescendo sobre a do osmótico e interpenetrante.

Diziam: 'Ah, o brilho! Está se referindo a cocaína!' Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como saturday night fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock'n'roll, o prazer do hedonismo – assim como o prazer do ascetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.

'Realce' custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da trilogia dos re – que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto –, em substituição a 'Rebento', samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum – que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual. (Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte. Raramente uma canção minha nasce da simples decisão de exercitar as palavras e os sons, fazer quebra-cabeças, ludos criativos. Em geral elas partem de um fundamento religioso, filosófico ou político, de alguma intenção pré-determinada, de algo a ser dito e explicado).

Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de 'Realce'. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais difícil. Começada aqui, onde anotei as primeiras ideias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.

A expressão-título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antônio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em 'realce', 'realçar'…"