Letras da Canções

  • BARATO TOTAL

    (1974, gravada por Gal Costa em Cantar, 1974; Gil só veio a gravá-la em parceria com Gal e Nando Reis em Trinca de ases, 2018.)

    Escolhida por Marília Gil

    Lá, lalalalalalalá

    Quando a gente tá contente

    Tanto faz o quente

    Tanto faz o frio

    Tanto faz

    Que eu me esqueça do meu compromisso

    Com isso e aquilo que aconteceu dez minutos atrás

    Dez minutos atrás de uma idEia já dão

    Pra uma teia de aranha crescer

    E prender

    Sua vida na cadeia do pensamento

    Que de um momento pro outro começa a doer

    Lá, lalalalalalalá

    Quando a gente tá contente

    Gente é gente, gato é gato

    Barata pode ser um barato total

    Tudo que você disser deve fazer bem

    Nada que você comer deve fazer mal

    Quando a gente tá contente

    Nem pensar que tá contente

    Nem pensar que tá contente a gente quer

    Nem pensar a gente quer

    A gente quer, a gente quer

    A gente quer é viver

    Lá, lalalalalalalá

    Comentário de Gil: "Outra música da época inspirada em e versando sobre a ioga, a macrobiótica, tudo isso. Discorre poeticamente acerca da ideia de bem-estar, do homem em situação plena de bem-estar. Eu não a fiz para a Gal – Gal a ouviu, gostou e gravou; eu a fiz para mim, para dizer aquelas coisas, para eliminar. "Barata pode ser um barato total": é verso é para me referir ao fato de que Caetano tinha medo de barata; para brincar com ele, como quem diz: "O que é isso! Você está ótimo, não tem medo de nada".

  • SERAFIM

    (1983, ficou de fora de Extra, em 1983, e só foi gravada por Gil em Parabolicamará, 1991.)

    Quando o agogô soar

    O som do ferro sobre o ferro

    Será como o berro do bezerro

    Sagrado em agrado ao grande Ogum

    Quando a mão tocar no tambor

    Será pele sobre pele

    Vida e morte para que se zele

    Pelo orixá e pelo egum

    Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai xangô

    Eparrei, ora iêiê – pra iansã e mãe Oxum

    "Oba bi olorum koozi": como Deus, não há nenhum

    Será sempre axé

    Será paz, será guerra, serafim

    Através das travessuras de Exu

    Apesar da travessia ruim

    Há de ser assim

    Há de ser sempre pedra sobre pedra

    Há de ser tijolo sobre tijolo

    E o consolo é saber que não tem fim

    Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô

    Eparrei, ora iêiê – pra lansã e mãe Oxum

    "Oba bi Olurum koozi": como Deus, não há nenhum

    Comentário de Gil: Religiosamente incorreta – "Quando 'Serafim' foi lançada, eu cantava 'carneiro' onde hoje está 'bezerro' – um erro religioso: o carneiro é um animal rejeitado por Ogum e não podia ser referido em sua homenagem. A correção veio depois (no show Tropicália 2 eu fiz a substituição), por advertência do Caetano e da Flora, que havia se iniciado no candomblé. Eu tinha usado 'carneiro' porque é um animal comumente sacrificado no candomblé.

    Em 'Lavagem do Bonfim' [canção composta para Gal Costa em 1993] também há algo que pode ser visto como uma incorreção, mas que é proposital. Ao citar o caruru – que não é uma comida para Oxalá – eu não estou em referindo ao caruru como uma comida específica de oferenda a um santo, mas ao caruru como somatório das comidas de santo, que na Bahia chamam carurur. 'Vou ao caruru da dona Fulana', quer dizer, 'lá vai ter abará, acarajé, vatapá, arroz, feijão, inhame etc.'. 'Caruru' ali está portanto no sentido transreligioso, profano, de 'ceia', 'refeição', comida de todos os santos."

    Iorubá – "'Kabieci lê': saudação para Xangô; 'eparrei': para Iansã; 'ora iê iê': para Oxum. 'Oba bi Olurum koozi': a expressão eu vi inscrita num para-choque de caminhão em Lagos, acompanhada da tradução em inglês: 'No king as God'. 'Um dia ainda vou usar isso numa música', pensei. Guardei na memória e usei, acompanhada da tradução (livre) em português ['Como Deus não há nenhum' – 'nenhum' rimando com 'Oxum'].

    Da utopia da poesia de as palavras serem as coisas, e da relação de correspondência entre som e sentido, fundo e forma – ['O som do ferro sobre o ferro será como o berro do bezerro': as aliterações em erres e bês parecem exprimir aquilo a que a frase alude, estabelecendo biunivocamente a conformidade fônico-semântica, como se os versos não apenas falassem de um ruído: como se fossem o ruído.]

    "Os recursos sonoros empregados na construção dessa letra são mesmo muito fortes, de profunda inspiração. Tinha que ser assim, porque a música é sobre a potência – do axé, dos orixás."

    [Um deles, Exu – aliás, aludido em outro bloco de carregada sonoridade, uma sucessão tríplice "trs" e vês e esses –, é destacado pelo compositor:] "Tenho por ele uma particular admiração. No sincretismo, Exu é assimilado ao demônio, visto como uma entidade do mal, mas não é nada disso. Embora traquino, travesso ninguém, nenhum orixá trabalha nem vive sem ele. Exu é o eixo, o mensageiro; o que dá energia a tudo – como a luz solar para a Terra.

    [Explicitação poética desse pensamento pode ser conferida numa recentíssima música de Gil, intitulada justamente "O eixo e Exu", de 1996. E de 1995 é 'Dança de Shiva', outra canção em que a mesma referência reverenciadora à entidade é feita pelo compositor.]

  • BABÁ ALAPALÁ

    (1976, gravada em Refavela, 1977.)

    Escolhida por Ana Lomelino

    Aganju, Xangô

    Alapalá, Alapalá, Alapalá

    Xangô, Aganju

    O filho perguntou pro pai

    "Onde é que tá o meu avô

    O meu avô, onde é que tá?"

    O pai perguntou pro avô

    "Onde é que tá meu bisavô

    Meu bisavô, onde é que tá?"

    Avô perguntou bisavô:

    "Onde é que tá tataravô

    Tataravô, onde é que tá?"

    Tataravô, bisavô, avô

    Pai Xangô, Aganju

    Viva egum, babá Alapalá!

    Aganju, Xangô

    Alapalá, Alapalá, Alapalá

    Xangô, Aganju

    Alapalá, egum, espírito elevado ao céu

    Machado alado, asas do anjo Aganju

    Alapalá, egum, espírito elevado ao céu

    Machado astral, ancestral do metal

    Do ferro natural,

    do corpo preservado

    Embalsamado em bálsamo sagrado

    Corpo eterno e nobre de um rei nagô

    Xangô

    Comentário de Gil: "Alapalá é um egum do terreiro de egum da ilha de Itaparica, exatamente o egum da família de Xangô – que foi o primeiro candomblé que eu visitei, levado pelo Mestre Di, em 72. Alapalá foi um dos eguns que saíram, dançaram ali, naquela noite, em que o Mestre Di jogou os búzios para mim e viu que eu era de Xangô, o que pesou no fato de eu, mais tarde, ter escolhido Alapalá para homenagear. Os versos aludem a Aganju, já na qualidade de orixá, que é um Xangô menino, e ao próprio Xangô Alapalá, que é o egum da família de Xangô, lá na ilha de Itaparica.

    Na letra eu vou fazendo um comentário sobre a ancestralidade, considerada tanto do ponto de vista orixá quanto do ponto de vista do egum, que são duas coisas diferentes, sendo os orixás entidades míticas olimpo, os deuses, e os eguns, os desencarnados, os humanos. Eu aí faço uma associação meio livre e pouco rigorosa, não necessariamente correta, entre uma coisa e outra; enfim, trata-se de uma interpretação muito pessoal.

    À época em que eu fui ao terreiro, eu estava começando a compreender e a me interessar pelo profundo envolvimento que o candomblé tem com a cultura negra da Bahia, com todo o universo das formas de expressão cultural da Bahia, a música, o carnaval, o modo de ser do povo e da cidade, Salvador. Eu começava a associar o candomblé a todo esse mundo expressivo baiano, algo que não fazia antes e que só passei a fazer quando ele entrou na minha vida, depois que eu voltei do exílio."

  • ESOTÉRICO

    (1976, gravada por Doces Bárbaros, em 1976, depois solo por Gil em Um Banda Um, 1982.)

    Escolhida por um dos gêmeos

    Não adianta nem me abandonar

    Porque mistério sempre há de pintar por aí

    Pessoas até muito mais vão lhe amar

    Até muito mais difíceis que eu pra você

    Que eu, que dois, que dez, que dez milhões

    Todos iguais

    Até que nem tanto esotérico assim

    Se eu sou algo incompreensível

    Meu Deus é mais

    Mistério sempre há de pintar por aí

    Não adianta nem me abandonar

    Nem ficar tão apaixonada, que nada!

    Que não sabe nadar

    Que morre afogada por mim

    Comentário de Gil: "Uma tentativa de transpor a ideia do mistério divino, místico-religioso, para o campo do amor terreno; de desmistificar e humanizar a categorização do esotério como algo inatingível, colocando-o como inerente à nossa natureza, à complexidade do nosso afeto. O ímpeto da canção nasceu da vontade de falar do sentido esotérico das coisas através de algo que fosse demasiadamente humano como é a relação amorosa entre duas pessoas – não deixando, no fim, de remeter a questão para a divindade (qualquer mistério está aquém do mistério do Criador)."

  • VAMOS FUGIR

    (1984, parceria com Liminha, mas a letra é só de Gil; gravada em Raça humana, 1984.)

    Vamos fugir

    Deste lugar, baby

    Vamos fugir

    'To cansado de esperar

    Que você me carregue

    Vamos fugir

    Pra outro lugar, baby

    Vamos fugir

    Pra onde quer que você vá

    Que você me carregue

    Pois diga que irá

    Irajá, Irajá

    Pronde eu só veja você

    Você veja a mim só

    Marajó, Marajó

    Qualquer outro lugar comum

    Outro lugar qualquer

    Guaporé, Guaporé

    Qualquer outro lugar ao sol

    Outro lugar ao sul

    Céu azul, céu azul

    Onde haja só meu corpo nu

    Junto ao seu corpo nu

    Vamos fugir

    Pra outro lugar, baby

    Vamos fugir

    Pra onde haja um tobogã

    Onde a gente escorregue

    Todo dia de manhã

    Flores que a gente regue

    Uma banda de maçã

    Outra banda de reggae

    Comentário de Gil: "Uma versão para o reggae 'Gimme your love', que eu fiz originalmente em inglês e que assim gravei na Jamaica, sobre uma música do Liminha. E que também já vei ocom a fôrma pronta na qual eu tive que ir encaixando as palavras. Quando chegamos aqui, achamos que era interessante a canção sair em português, porque afinal era para um disco brasileiro; foi aí que eu fiz a versão dela. Aqui temos de novo um par romântico, um casal fugindo. A construção poética, no plano sonoro, é forjada a partir de uma associação, empregando palavras que contenham 'reggae' ['carregue', 'escorregue', 'regue']".

  • AMOR ATÉ O FIM

    (1966, gravada por Elis em Dois na Bossa no. 2, 1966, e depois em Elis, 1974; Gil só veio a gravá-la pela primeira vez em Social Samba Club, 2008.)

    Amor não tem que se acabar

    Eu quero e sei que vou ficar

    Até o fim eu vou te amar

    Até que a vida em mim resolva se apagar

    Um amor é como a rosa num jardim

    A gente cuida, a gente olha

    A gente deixa o Sol bater

    Pra crescer, pra crescer

    A rosa do amor tem sempre que crescer

    A rosa do amor não vai despetalar

    Pra quem cuida bem da rosa

    Pra quem sabe cultivar

    Amor não tem que se acabar

    Até o fim da minha vida eu vou te amar

    Eu sei que o amor não tem que se apagar

    Até o fim da minha vida eu vou te ama

    Comentário de Gil: "'Amor até o fim' foi feita logo após minha primeira separação. Quanto ao fato de a canção, que explora o tema do amor como algo infindo, ter se originado justamente de um sentimento tido ao final de um casamento, isso não constitui um fato único: 'Drão' também é assim. Eis uma recorrência: exatamente quando uma relação está terminando, vem uma canção tratando da infinitude do amor.

    Aqui entra a necessidade de manifestar minha visão particular, de ser pessoal, próprio; o momento confessional exigindo que a sinceridade prevaleça, que eu seja sincero e diga aquilo que realmente eu acho. É um desses momentos especiais na minha obra em que eu realmente sou único, sou original, sou autoral, dizendo que o amor não tem que se acabar quando uma relação está se acabando.

    Ao mesmo tempo, em 'Amor até o fim' já há sinais das questões filosóficas que vão ocupar espaço mais tarde em minha obra, como a do eterno retorno e a ideia taoísta do tempo. A canção antecipa a ideia do amor como campo da existência total, dentro de uma visão ecológica dos sentimentos humanos, que vai depois aparecer em canções seminais da minha fase filosófica. Já é um pouco isso: a filosofia do amor."

  • PALCO

    (1980, gravada por A Cor do Som
    em Transe total, 1980, e por Gil em Luar, 1981.)

    Escolhida por Nara Gil

    Subo nesse palco

    Minha alma cheira a talco

    Como bumbum de bebê

    De bebê

    Minha aura clara

    Só quem é clarividente pode ver

    Pode ver

    Trago a minha banda

    Só quem sabe onde é Luanda

    Saberá lhe dar valor

    Dar valor

    Vale quanto pesa

    Pra quem preza o louco bumbum do tambor

    Do tambor

    Fogo eterno pra afugentar

    O inferno pra outro lugar

    Fogo eterno pra consumir

    O inferno fora daqui

    Venho para a festa

    Dei que muitos têm na testa

    O deus Sol como um sinal

    Um sinal

    Eu, como devoto

    Trago um cesto de alegrias de quintal

    De quintal

    Há também um cântaro

    Quem manda é a deusa Música

    Pedindo pra deixar

    Pra deixar

    Derramar o bálsamo
Fazer o canto, cantar o cantar

    Lalaiá

    Fogo eterno pra afugentar

    O inferno pra outro lugar

    Fogo eterno pra consumir

    O inferno fora daqui

    Comentário de Gil: "Eu estava havia três dias pensando em parar de cantar; em deixar a sequência profissional de discos e shows. Estava prestes a tomar essa decisão – e avisar todo mundo –, mas não por uma razão que tivesse a ver com cantar, que é a coisa que mais me encanta na vida. Minha sensação era de fastio; eu queria era um elemento que me trouxesse um ânimo novo. 'Se eu vou parar mesmo', pensei, 'eu tenho que fazer uma declaração pública, e essa declaração tem que ser musical'. Aí eu fiz 'Palco', uma canção que era na verdade pra não deixar dúvida a respeito de tudo o que cantar representa para mim e a respeito da minha relação com a música – simbolizada de forma completa pelo estar no palco."

    De que fala "Palco" ("o primeiro afoxé forte") – "De um espaço semi-sagrado; da sua função exorcizante, catártica, clínica – daí o refrão (na hora em que compus, eu me lembrava muito do pouco que sabia sobre as tragédias gregas, o palco grego, Dioniso).

    De um sacerdócio; da capacidade de administrar um ritual – o da música em funcionamento, cumprindo seus ditames; de como eu me vejo nesse papel, como eu fantasio a minha visão e como eu vejo essas fantasias do meu próprio olhar.

    Do aspecto transmutador da música para mim no palco: de como estar ali faz provavelmente desaparecer uma opacidade natural do caráter bruto das coisas comuns, sem sabores especiais, do cotidiano, e como o haver ali sabores especiais em tudo me dá um aspecto de transfiguração – daí a ideia de que ali se propicia que alguém veja minha aura."

    Compor e cantar – "Duas dimensões e dois retornos diferentes à alma. Compor é motivo de extraordinário, transcendental orgulho pela vida, o de fazer parte do universo da criação; cantar é motivo de vaidade. É muito envaidecedor estar num palco e produzir prazer instantaneamente para todos – uma afirmação anímica de vida da música através das energias dos corpos humanos ao vivo. No palco, além de diversão, a sensação é de doação, de benfeitoria do homem para o homem. Já o momento da composição é solitário, individual, e, ao se esgotar, daí por diante é como se a música partisse para o mundo, como um filho. Cantar é reabraçar os filhos, reuni-los de novo ao seu corpo, fazê-los parte do seu corpo."

    "Cantar o" = "cântaro" – "Quando eu digo 'cantar o', eu digo de novo 'cântaro'. Mais do que rima, é recomposição: a palavra 'cântaro' é reconstituída, como se tivessem embutido ali o cântaro. Muitas pessoas não devem nem perceber o 'cantar o'; na audição deve prevalecer 'cântaro' mesmo."

  • ERA NOVA

    (1976, gravada em Refavela, 1977.)

    Falam tanto numa nova era

    Quase esquecem do eterno é

    Só você poder me ouvir agora

    Já significa que dá pé

    Novo tempo sempre se inaugura

    A cada instante que você viver

    O que foi já era, e não há era

    Por mais nova que possa trazer de volta

    O tempo que você perdeu, perdeu, não volta

    Embora o mundo, o mundo, dê tanta volta

    Embora olhar o mundo cause tanto medo

    Ou talvez tanta revolta

    A verdade sempre está na hora

    Embora você pense que não é

    Como seu cabelo cresce agora

    Sem que você possa perceber

    Os cabelos da eternidade

    São mais longos que os tempos de agora

    São mais longos que os tempos de outrora

    São mais longos que os tempos da era nova

    Da nova, nova, nova, nova, nova era

    Da era, era, era, era, era nova

    Da nova, nova, nova, nova, nova era

    Da era, era, era, era, era nova

    Que sempre esteve e está pra nascer

    Falam tanto

    Comentário de Gil: [Em "Era nova", Gilberto Gil sublinha uma crítica à ideia de sempre se querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros; de se buscar instalar um novo ciclo histórico, um "novo início", seja do ponto de vista religioso ou do político, ideia presente tanto no sonho da Era de Aquário (tematizada mais claramente pela canção) como no sonho revolucionário de esquerda – em todos os messianismos, enfim.]

    "Querer uma ''era nova' ou 'o fim da história' [referência à sua música assim intitulada, e que data de 1991] – o começo ou o fim: duas pontas de um mesmo absurdo".

    [Ainda segundo Gil, "Era nova", no que é para ele o momento-chave da canção, trata de imperceptibilidade da passagem do tempo, mais exatamente] "da ambiguidade eternamente presente em nós de termos em relação ao tempo uma percepção e uma não-percepção: a de que ele passa quando pensamos e a de que ele não passa quando não pensamos – isto é: 'sem que você possa perceber'."

  • TEMPO REI

    (1984, gravada em Raça humana, 1984.)

    Não me iludo

    Tudo permanecerá do jeito que tem sido

    Transcorrendo

    Transformando

    Tempo e espaço navegando todos os sentidos

    Pães de Açúcar

    Corcovados

    Fustigados pela chuva e pelo eterno vento

    Água mole

    Pedra dura

    Tanto bate que não restará nem pensamento

    Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

    Transformai as velhas formas do viver

    Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

    Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

    Pensamento

    Mesmo o fundamento singular do ser humano

    De um momento

    Para o outro

    Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

    Mães zelosas

    Pais corujas

    Vejam como as águas de repente ficam sujas

    Não se iludam

    Não me iludo

    Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

    Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

    Transformai as velhas formas do viver

    Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

    Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

    Comentário de Gil: "Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em 'Oração ao Tempo', onde a frase-chave para mim é: 'Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido' - quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.

    Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer no pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu 'não posso esquecer que um dia houve em que eu não estava aqui' ['Cada Tempo em Seu Lugar'], um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo – nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo?

    Aí reside para mim um problema do existencialismo. Aí, e só aí, eu esbarro um pouco em Sartre, apesar do meu grande amor por ele, e ele não me convence. Sartre morreu e o mundo está aí! Por isso à sua filosofia eu chamaria mais de individualismo do que existencialismo. Um existencialismo individualista, não algo universalizável.

    [O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a ideia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” – onde, nas palavras do compositor, "já nem pensar é possível".]

  • DEIXAR VOCÊ

    (1981, gravada em Um Banda Um, 1982.)

    Deixar você ir

    Não vai ser bom, não vai ser

    Bom pra você, nem melhor pra mim

    Pensar que é só

    Deixar de ver e acabou

    Vai acabar muito pior

    Pra que mentir e

    Fingir que o horizonte

    Termina ali defronte

    E a ponte acaba aqui?

    Vamos seguir

    Reinventar o espaço

    Juntos manter o passo

    Não ter cansaço

    Não crer no fim

    O fim do amor, oh, não

    Alguma dor, talvez sim

    Que a luz nasce na escuridão

    Comentário de Gil: "'Deixar você' é da mesma época de 'Drão', mas não teve nenhum personagem no qual eu tivesse me baseado. O personagem da letra é inventado e surge de uma decisão assim: 'Vou fazer uma canção'. Na verdade, 'Deixar você' foi feita para imitar o Djavan; eu quis compor uma canção que se assemelhasse com o que eu achava que era o modo do Djavan fazer música. Fiquei fazendo umas sequências melódico-harmônicas, para mim parecidas com as dele, com alguns traços do estilo dele, e aí, feita a música, pensei: 'Bom, o que é que eu vou fazer com isso?'. Aí escrevi os versos, nos quais eu não tratava de uma situação real sobre a qual eu quisesse elaborar um pensamento."

  • ANDAR COM FÉ

    (1982, gravada em Um Banda Um, 1982.)

    Andá com fé eu vou

    Que a fé não costuma faiá

    Andá com fé eu vou

    Que a fé não costuma faiá

    Que a fé tá na mulher

    A fé tá na cobra coral

    Ô-ô

    Num pedaço de pão

    A fé tá na maré

    Na lâmina de um punhal

    Ô-ô

    Na luz, na escuridão

    Andá com fé eu vou

    Que a fé não costuma faiá

    Andá com fé eu vou

    Que a fé não costuma faiá

    A fé tá na manhã

    A fé tá no anoitecer

    Ô-ô

    No calor do verão

    A fé tá viva e sã

    A fé também tá pra morrer

    Ô-ô

    Triste na solidão

    Andá com fé eu vou

    Que a fé não costuma faiá

    Andá com fé eu vou

    Que a fé não costuma faiá

    Certo ou errado até

    A fé vai onde quer que eu vá

    Ô-ô

    A pé ou de avião

    Mesmo a quem não tem fé

    A fé costuma acompanhar

    Ô-ô

    Pelo sim, pelo não

    Comentário de Gil: A fé e a 'faia' – "O uso do 'faiá' é assumido com a intenção de legitimar uma forma popular contra a hegemonia do bem-falar das elites. É uma homenagem ao linguajar caipira, ao modo popular mineiro, paulista, baiano – brasileiro, enfim – de falar 'falhar' no interior. É quase como se a frase da canção não pudesse ser verdade se o verbo fosse pronunciado corretamente – o que seria um erro... Outro dia cometeram esse 'deslize' na Bahia, ao utilizarem a expressão na promoção de uma campanha de cinto de segurança. Nos outdoors saiu: 'A fé não costuma falhar' (a propaganda associava o cinto à fitinha do Senhor do Bonfim). Eu deixei, mas achei a correção desnecessária."

    [– "Faiá" é coração, "falhar" é cabeça, e fé é coração.]

    – "É isso aí. 'A fé não costuma faiá': é pra quem fala assim que ela não costuma 'faiá'."

  • NOS BARRACOS DA CIDADE (BARRACOS)

    (1985, parceria com Liminha, mas a letra é só de Gil; gravada em Dia dorim noite neon, 1985.)

    Nos barracos da cidade

    Ninguém mais tem ilusão

    No poder da autoridade

    De tomar a decisão

    E o poder da autoridade

    Se pode, não faz questão

    Se faz questão, não consegue

    Enfrentar o tubarão

    Ô-ô-ô, ô-ô

    Gente estúpida

    Ô-ô-ô, ô-ô

    Gente hipócrita

    O governador promete

    Mas o sistema diz não

    Os lucros são muito grandes

    Mas ninguém quer abrir mão

    Mesmo uma pequena parte

    Já seria a solução

    Mas a usura dessa gente

    Já virou um aleijão

    Ô-ô-ô, ô-ô

    Gente estúpida

    Ô-ô-ô, ô-ô

    Gente hipócrita

    Comentário de Gil: "'Barracos' é outras das minhas canções que nasceram de uma música que veio pronta e na qual eu tive que encaixar uma letra. E já veio com frases melódicas exigindo redondilhas maiores. Aí me ocorreu falar dos barracos das comunidades periféricas; do fenômeno da exclusão como uma distorção do sistema – um tema clássico entre os vários da canção popular, e que tinha caracterizado parte considerável de toda a música de protesto da fase de formação da MPB, desse grande sistema chamado MPB; música de protesto da qual 'Procissão' foi bem um símbolo. 'Barracos' é uma nova 'Procissão'."

  • REALCE

    (1979, gravada em Realce, 1979.)

    Não se incomode

    O que a gente pode, pode

    O que a gente não pode explodirá

    A força é bruta

    E a fonte da força é neutra

    E de repente a gente poderá

    Realce, realce

    Quanto mais purpurina melhor

    Realce, realce

    Com a cor do veludo

    Com amor, com tudo

    De real teor de beleza

    Não se impaciente

    O que a gente sente, sente

    Ainda que não se tente afetará

    O afeto é fogo

    E o modo do fogo é quente

    E de repente a gente queimará

    Realce, realce

    Quanto mais parafina melhor

    Realce, realce

    Com a cor do veludo

    Com amor, com tudo

    De real teor de beleza

    Não desespere

    Quando a vida fere, fere

    E nenhum mágico interferirá

    Se a vida fere

    Com a sensação do brilho

    De repente a gente brilhará

    Realce, realce

    Quanto mais serpentina melhor

    Realce, realce

    Com a cor do veludo

    Com amor, com tudo

    De real teor de beleza

    Comentário de Gil: "Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado – a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop –, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções – de dizer coisas através de canções populares –, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.

    'Realce' é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa 'ação da não-ação', ou, a impotência que se torna potência, ou, o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.

    É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo descobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.

    A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de 'salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos' – nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado saturday night fever está propositalmente explicitado nos três pseudo-refrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os 'refrões' remontam ao sentido de potência contido no wu wei.

    Estrofe I; versos 1, 2 e 3 – Há uma idéea da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: Homo sapiens. Versos 4, 5 e 6 – O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partícipe do moto-contínuo, cíclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.

    Estrofe II; 1, 2 e 3 – O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está 'afeto'; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está 'afeta; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo. 4, 5 e 6 – O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide – mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.

    III; 1, 2 e 3 – A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse 'alfômega' nascimento-morte, a grande questão colocada para nós. 4, 5 e 6 – De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o sol ou sob a lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenológico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.

    A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, 'Realce' não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveis se abrem.

    Era o momento auge da música disco – aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.

    Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a 'superfície do profundo' – onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.

    E é disso que falam 'Realce' e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos, mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a ideia do estanque prevalescendo sobre a do osmótico e interpenetrante.

    Diziam: 'Ah, o brilho! Está se referindo a cocaína!' Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como saturday night fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock'n'roll, o prazer do hedonismo – assim como o prazer do ascetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.

    'Realce' custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da trilogia dos re – que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto –, em substituição a 'Rebento', samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum – que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual. (Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte. Raramente uma canção minha nasce da simples decisão de exercitar as palavras e os sons, fazer quebra-cabeças, ludos criativos. Em geral elas partem de um fundamento religioso, filosófico ou político, de alguma intenção pré-determinada, de algo a ser dito e explicado).

    Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de 'Realce'. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais difícil. Começada aqui, onde anotei as primeiras ideias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.

    A expressão-título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antônio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em 'realce', 'realçar'…"

  • Crie.

    Tudo começa com uma ideia. Talvez você queira abrir um negócio. Talvez você queira transformar um passatempo em algo mais sério. Ou talvez você tenha um projeto criativo para compartilhar com o mundo. O que quer que seja, a forma como você conta sua história on-line pode fazer toda a diferença.

  • Cresça.

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