Super-homem – A Canção

(1979, gravada em Realce, 1979.)

Escolhida por Rodrigo Godoy

 

Um dia

Vivi a ilusão de que ser homem bastaria

Que o mundo masculino tudo me daria

Do que eu quisesse ter

Que nada

Minha porção mulher, que até então se resguardara

É a porção melhor que trago em mim agora

É que me faz viver

Quem dera

Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera

Ser o verão o apogeu da primavera

E só por ela ser

Quem sabe

O Super-Homem venha nos restituir a glória

Mudando como um deus o curso da história

Por causa da mulher

Comentário de Gil: "Eu estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos fazer a excursão do lançamento do Nightingale – um disco gravado lá, com produção do Sérgio Mendes –, em março e abril de 79, e gravar o disco Realce, ao final da excursão. Na ocasião eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio, por isso estava hospedado na casa do Caetano. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem eu me recolhi num quarto por volta de uma hora da manhã.

De repente eu ouvi uma zoada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido o filme Super-Homem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Super-Homem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme… Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir.

Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Super-Homem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa ideia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa. No dia seguinte a mostrei ao Caetano; ele ficou contente: ‘Que linda!’ E eu viajei para os Estados Unidos. Fiz a excursão toda e, só quando cheguei a Los Angeles, um mês e tanto depois, para gravar o disco, foi que eu vi o filme. Durante a gravação, uma amiga americana, Olenka Wallac, que morava em Los Angeles na ocasião, me levou para ver.

A canção foi feita portanto com base na narrativa do Caetano. Como era Super-Homem – O Filme, ficou 'Super-Homem – a Canção'; não tinha certeza se ia manter esse título ao publicá-la, mas mantive.”

Das relações entre o poema e a melodia no processo de composição – “Como 'Retiros Espirituais', 'Super-Homem – a Canção' é uma das poucas que eu fiz assim: música e letra ao mesmo tempo. É uma canção a serviço de uma letra, atrás de um sopro da poesia, mas com os versos também se submetendo a uma necessidade de respiração da canção. Há momentos em que a extensão do verso determina o estender-se da frase musical. Em outros, para se dar determinadas pausas e realizar o conceito de simetria e elegância, a extensão da frase poética se adequa à do fraseado melódico.

Assim, depois de ‘Um dia’, há o corte e, lá adiante, ‘Que nada’, depois ‘Quem dera’ e depois ‘Quem sabe’ já surgem condicionados pelo ‘Um dia’ do início. A frase musical de ‘Um dia’ condicionou a extensão, o corte e a escolha dessas interjeições – ‘Que nada’, ‘Quem dera’ e ‘Quem sabe’. (Mesmo no primeiro caso – ‘Um dia’ -, também se reivindica ali um sentido de interjeição; embora na construção da frase, do ponto de vista gramatical, possa não ser considerado assim, do ponto de vista do canto, é.)”

Questões de métrica e simetria; e de mnemônica – “A música tem uma cadência descansada, escorrida, e umas quebras interessantes. A melodia muda, a métrica é regular (as notas se alteram, mas os tempos são iguais). Você tem quatro estrofes com versos de 2, 14, 12 e 6 sílabas cada – assimétricas na distribuição interna, mas simétricas nas configurações finais." [A estrofe de abertura é ligeiramente diferente: o terceiro verso também apresenta 14 sílabas poéticas].

“Depois de fazer a primeira estrofe, eu decidi que aquilo seria um módulo que eu iria manter. Isso facilitou para que eu a fizesse rápido; nascida aquela célula, ela se reproduziu em mais três iguais. Dobrei o caderno, deixei o violão e fui dormir. Quando acordei pela manhã, a primeira coisa que fiz foi tocar, cantar e ver que a canção estava fixada. Se eu estivesse com um gravador, eu a teria gravado antes de dormir, para me assegurar (eu faço isso sempre hoje em dia, porque tenho cada vez menos memória). Como eu não estava, é provável que eu tenha usado algum recurso mnemônico, como fixar o número de notas ou sílabas das primeiras frases, ou então as cifras.”

Sobre a “porção mulher” – “Muita gente confundia essa música como apologia ao homossexualismo, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião – me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano. Eu tinha feito 'Pai e Mãe' antes, já abordara a questão, mais explicitamente da posição de ver o filho como o resultado do pai e da mãe. Em 'Super-Homem – a Canção', a ideia central é de que pai é mãe, ou seja, todo homem é mulher (e toda mulher é homem).”

Do livro GiLuminoso – A Po.Ética do Ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999 – [– E você nunca teve dificuldade de assumir o seu lado feminino, já que nunca foi um homem machão.]

"Nunca fui e posso até ter estado ali na fronteira e ter sido ameaçado por isso. Mas eu tive a felicidade, num momento crucial da minha vida, de conhecer Caetano.

[– Que sempre teve a coragem de assumir, com arte, o seu feminino.]

"Pronto. É isso! Por isso me tornei discípulo dele. Em tantas coisas e nas fundamentais, sempre obedecia a uma necessidade de me deslocar com ele, acompanhando seus movimentos e aprendendo mesmo. Eu aprendi muita coisa. Quando eu digo Caetano, digo ele pessoa e tudo que vem com o seu mundo cultural e vivencial, os companheiros, a família… O mundo que aprendi com ele foi de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza. Fui naquela fronteira lá do ‘homem-homem’, de que eu tinha me aproximado na adolescência. Mas, na verdade, eu nunca tinha caído nela.

No colégio, era um menino que recusava a 'virilidade' fácil. Por exemplo: toda vez que um menino me desafiava pra briga – aquela coisa comum que acontece constantemente no recreio das escolas, de meninos empurrando os outros, xingando a mãe e provocando, num exercício natural da manifestação da virilidade -, tudo isso em mim era difuso e confuso, e eu já não gostava. Toda vez que um menino me desafiava pra briga, eu dava as costas e recusava aquele exercício. Às vezes, me xingavam: ‘Mulherzinha! Mulherzinha!’, ‘Fugiu, maricas!’. E eu ouvia aquilo e era ela, minha ânima, quem falava de dentro: ‘Tenha paciência e resignação. Essas coisas são características minhas. É isso mesmo que você está ouvindo: mulherzinha!’.

[…]

Essa mulher sempre falou muito mais alto dentro de mim. E por isso que digo na canção: ‘É a porção melhor que trago em mim agora/ É o que me faz viver’. Eu aprendi, ela foi me ensinando que aquilo que eu queria, aquilo com que meu coração se identificava, era semUm dia

Vivi a ilusão de que ser homem bastaria

Que o mundo masculino tudo me daria

Do que eu quisesse ter

Que nada

Minha porção mulher, que até então se resguardara

É a porção melhor que trago em mim agora

É que me faz viver

Quem dera

Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera

Ser o verão o apogeu da primavera

E só por ela ser

Quem sabe

O Super-Homem venha nos restituir a glória

Mudando como um deus o curso da história

Por causa da mulher

Comentário de Gil: "Eu estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos fazer a excursão do lançamento do Nightingale – um disco gravado lá, com produção do Sérgio Mendes –, em março e abril de 79, e gravar o disco Realce, ao final da excursão. Na ocasião eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio, por isso estava hospedado na casa do Caetano. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem eu me recolhi num quarto por volta de uma hora da manhã.

De repente eu ouvi uma zoada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido o filme Super-Homem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Super-Homem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme… Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir.

Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Super-Homem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa ideia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa. No dia seguinte a mostrei ao Caetano; ele ficou contente: ‘Que linda!’ E eu viajei para os Estados Unidos. Fiz a excursão toda e, só quando cheguei a Los Angeles, um mês e tanto depois, para gravar o disco, foi que eu vi o filme. Durante a gravação, uma amiga americana, Olenka Wallac, que morava em Los Angeles na ocasião, me levou para ver.

A canção foi feita portanto com base na narrativa do Caetano. Como era Super-Homem – O Filme, ficou 'Super-Homem – a Canção'; não tinha certeza se ia manter esse título ao publicá-la, mas mantive.”

Das relações entre o poema e a melodia no processo de composição – “Como 'Retiros Espirituais', 'Super-Homem – a Canção' é uma das poucas que eu fiz assim: música e letra ao mesmo tempo. É uma canção a serviço de uma letra, atrás de um sopro da poesia, mas com os versos também se submetendo a uma necessidade de respiração da canção. Há momentos em que a extensão do verso determina o estender-se da frase musical. Em outros, para se dar determinadas pausas e realizar o conceito de simetria e elegância, a extensão da frase poética se adequa à do fraseado melódico.

Assim, depois de ‘Um dia’, há o corte e, lá adiante, ‘Que nada’, depois ‘Quem dera’ e depois ‘Quem sabe’ já surgem condicionados pelo ‘Um dia’ do início. A frase musical de ‘Um dia’ condicionou a extensão, o corte e a escolha dessas interjeições – ‘Que nada’, ‘Quem dera’ e ‘Quem sabe’. (Mesmo no primeiro caso – ‘Um dia’ -, também se reivindica ali um sentido de interjeição; embora na construção da frase, do ponto de vista gramatical, possa não ser considerado assim, do ponto de vista do canto, é.)”

Questões de métrica e simetria; e de mnemônica – “A música tem uma cadência descansada, escorrida, e umas quebras interessantes. A melodia muda, a métrica é regular (as notas se alteram, mas os tempos são iguais). Você tem quatro estrofes com versos de 2, 14, 12 e 6 sílabas cada – assimétricas na distribuição interna, mas simétricas nas configurações finais." [A estrofe de abertura é ligeiramente diferente: o terceiro verso também apresenta 14 sílabas poéticas].

“Depois de fazer a primeira estrofe, eu decidi que aquilo seria um módulo que eu iria manter. Isso facilitou para que eu a fizesse rápido; nascida aquela célula, ela se reproduziu em mais três iguais. Dobrei o caderno, deixei o violão e fui dormir. Quando acordei pela manhã, a primeira coisa que fiz foi tocar, cantar e ver que a canção estava fixada. Se eu estivesse com um gravador, eu a teria gravado antes de dormir, para me assegurar (eu faço isso sempre hoje em dia, porque tenho cada vez menos memória). Como eu não estava, é provável que eu tenha usado algum recurso mnemônico, como fixar o número de notas ou sílabas das primeiras frases, ou então as cifras.”

Sobre a “porção mulher” – “Muita gente confundia essa música como apologia ao homossexualismo, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião – me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano. Eu tinha feito 'Pai e Mãe' antes, já abordara a questão, mais explicitamente da posição de ver o filho como o resultado do pai e da mãe. Em 'Super-Homem – a Canção', a ideia central é de que pai é mãe, ou seja, todo homem é mulher (e toda mulher é homem).”

Do livro GiLuminoso – A Po.Ética do Ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999 – [– E você nunca teve dificuldade de assumir o seu lado feminino, já que nunca foi um homem machão.]

"Nunca fui e posso até ter estado ali na fronteira e ter sido ameaçado por isso. Mas eu tive a felicidade, num momento crucial da minha vida, de conhecer Caetano.

[– Que sempre teve a coragem de assumir, com arte, o seu feminino.]

"Pronto. É isso! Por isso me tornei discípulo dele. Em tantas coisas e nas fundamentais, sempre obedecia a uma necessidade de me deslocar com ele, acompanhando seus movimentos e aprendendo mesmo. Eu aprendi muita coisa. Quando eu digo Caetano, digo ele pessoa e tudo que vem com o seu mundo cultural e vivencial, os companheiros, a família… O mundo que aprendi com ele foi de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza. Fui naquela fronteira lá do ‘homem-homem’, de que eu tinha me aproximado na adolescência. Mas, na verdade, eu nunca tinha caído nela.

No colégio, era um menino que recusava a 'virilidade' fácil. Por exemplo: toda vez que um menino me desafiava pra briga – aquela coisa comum que acontece constantemente no recreio das escolas, de meninos empurrando os outros, xingando a mãe e provocando, num exercício natural da manifestação da virilidade -, tudo isso em mim era difuso e confuso, e eu já não gostava. Toda vez que um menino me desafiava pra briga, eu dava as costas e recusava aquele exercício. Às vezes, me xingavam: ‘Mulherzinha! Mulherzinha!’, ‘Fugiu, maricas!’. E eu ouvia aquilo e era ela, minha ânima, quem falava de dentro: ‘Tenha paciência e resignação. Essas coisas são características minhas. É isso mesmo que você está ouvindo: mulherzinha!’.

[…]

Essa mulher sempre falou muito mais alto dentro de mim. E por isso que digo na canção: ‘É a porção melhor que trago em mim agora/ É o que me faz viver’. Eu aprendi, ela foi me ensinando que aquilo que eu queria, aquilo com que meu coração se identificava, era sempre o lado que estava associado a ela e estava afiado à paz, ao apaziguamento e à recusa do conflito. A capacidade de ‘contornar’ estava ligada à visão contornada, aos contornos da mulher: os seios, a bunda e a tudo aquilo. Essas imagens foram crescendo comigo e eu fiquei, por isso mesmo, muito sexualmente hétero. Porque a mulher preencheu logo muito cedo esse lugar. Ela ficou muito entronizada dentro de mim e isso tem muito a ver também com minha infância, porque foram as mulheres que tomaram conta de mim muito cedo, minha mãe, minha avó e minha tia. Essa tríade tomou conta da minha cabeça. Primeiro, minha mãe, no seio materno; depois, minha avó, que me ensinou o verbo. E, por último, minha tia, que tomou conta do menino adolescente e o orientou.pre o lado que estava associado a ela e estava afiado à paz, ao apaziguamento e à recusa do conflito. A capacidade de ‘contornar’ estava ligada à visão contornada, aos contornos da mulher: os seios, a bunda e a tudo aquilo. Essas imagens foram crescendo comigo e eu fiquei, por isso mesmo, muito sexualmente hétero. Porque a mulher preencheu logo muito cedo esse lugar. Ela ficou muito entronizada dentro de mim e isso tem muito a ver também com minha infância, porque foram as mulheres que tomaram conta de mim muito cedo, minha mãe, minha avó e minha tia. Essa tríade tomou conta da minha cabeça. Primeiro, minha mãe, no seio materno; depois, minha avó, que me ensinou o verbo. E, por último, minha tia, que tomou conta do menino adolescente e o orientou.