Um sonho
(1977, primeiro gravada por Marcelo em seu álbum homônimo, só veio a ser gravada por Gil em Parabolicamará, 1991.)
Escolhida por José Gil. Não entrou para o repertório
Eu tive um sonho
Que eu estava certo dia
Num congresso mundial
Discutindo economia
Argumentava
Em favor de mais trabalho
Mais emprego, mais esforço
Mais controle, mais-valia
Falei de pólos
Industriais, de energia
Demonstrei de mil maneiras
Como que um país crescia
E me bati
Pela pujança econômica
Baseada na tônica
Da tecnologia
Apresentei
Estatísticas e gráficos
Demonstrando os maléficos
Efeitos da teoria
Principalmente
A do lazer, do descanso
Da ampliação do espaço
Cultural da poesia
Disse por fim
Para todos os presentes
Que um país só vai pra frente
Se trabalhar todo dia
Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia
Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia
Que parecia
Um prelúdio bachiano
Um frevo pernambucano
Um choro do Pixinguinha
E no salão
Todas as bocas sorriram
Todos os olhos me olharam
Todos os homens saíram
Um por um
Um por um
Um por um
Um por um
Fiquei ali
Naquele salão vazio
De repente senti frio
Reparei: estava nu
Me despertei
Assustado e ainda tonto
Me levantei e fui de pronto
Pra calçada ver o céu azul
Os estudantes
E operários que passavam
Davam risada e gritavam:
“Viva o índio do Xingu!
“Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!”
Comentários de Gil: "Modas de viola em geral têm uma narrativa linear, contam uma história com começo, meio e fim muito nítidos. São românticas, sentimentais, narram uma vicissitude amorosa, uma mulher que foi embora, ou um crime passional, alguém que deu um tiro no outro, ou histórias ligadas à família, casos de dificuldades na família, o filho que vai embora para trabalhar, a mãe que morre, alguém na cancela da estrada, o menino da porteira.
'Um sonho' é talvez a minha única moda de viola, estruturada em quadras como manda o figurino clássico, mas com uma linguagem e um desenrolar de poesia de cordel. É maluca. A entrada do velho na história vira o discurso de ponta-cabeça, o sentido espiritual se sobrepondo ao materialista-pragmático, na letra, passa a viger o contraponto artístico, o sonho mesmo."